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sábado, 15 de abril de 2017

Quadros Parisienses - Charles Baudelaire.

XCI - As velhinhas

A Victor Hugo

I

Nas sinuosas pregas, velhas capitais,
Onde tudo, até horrores, ficam fascinantes,
Espreito, obediente aos humores fatais,
Uns seres singulares, caducos, tocantes.

Esses monstros disformes já foram mulheres,
Eponina¹ ou Laís! Monstros tortos, corcundas
Alquebrados, amemo-los! pois esses seres
São almas sob as saias rotas, frias e imundas

Rastejam, flagelados por beijos iníquos,
Tremendo pelos ruídos ensurdecedores
Dos carros e apertando qual fossem relíquias,
Um saquinho bordado com fitas e flores;

Eles trotam assim como marionetes;
Arrastam-se assim como animais feridos,
Ou dançam, sem querer dançar, pobres joguetes
Onde um Diabo se enforca sem dó! Combalidos

Embora, têm agudos olhos de gavinha,
Luzentes como furos onde a água dormita;
Têm os olhos divinos de uma menininha
Que se admira e que ri com tudo que reflita.

- Observastes que muitos esquifes de velhas
São quase tão pequenos como os de um infante?
A Morte sábia põe nessas covas parelhas
Um símbolo de um gosto estranho e cativante,

E quando eu entrevejo um fantasma assim débil
Cruzando de Paris esse quadro fremente,
Parece que estou vendo que esse ente flébil
Vai-se indo devagar ao berço novamente;

A menos que, pensando sobre a geometria,
Eu busque, pelo aspecto dos membros discordes,
Quantas vezes se faz mister que, à porfia,
Mude o artesão a forma da caixa pra os corpos.

- Esses olhos são poços de milhões de prantos,
Cadinhos que um metal já frio palhetou...
Olhos misteriosos de invictos encantos
Para quem o Infortúnio austero amamentou!

II

De Frascati² defunto, Vestal³ namorada;
Acólita de Tália4, de que o apontador
Apenas sabe o nome; ó suave evaporada
A quem Tivoli outrora ensombrou em sua flor,

Embriagam-me todas; mas seres fugazes,
Há as que, mudando a dor em verdadeiro mel,
Disseram ao Desvelo que lhes dava asas:
Hipogrifo5 possante, leva-me até o céu!

Uma, por sua pátria em desdita provada,
Outra, que seu esposo carregou de dores,
Outra, por filho seu Madona trespassada,
Todas fariam rios de pranto e dissabores.

III

Ah! quantas eu segui dessas pequenas velhas!
Uma, entre outras, na hora em que o sol no ocaso
Cobre de sangue o céu com feridas vermelhas,
Pensativa, sentava, num banco, ao acaso,

Para ouvir um concerto, dos ricos em cobre,
Com que os soldados praças invadindo vão,
E que a tarde de ouro faz que a vida dobre,
Lançam certo heroísmo em cada cidadão.

Aquela, ereta ainda, altiva e no compasso,
Hauria avidamente do canto os tesouros;
Abriam-se os seus olhos como águia no espaço;
E sua marmórea fronte era feita pra os louros!

IV

Assim ides, estoicas e sem queixas tantas,
Através desse caos das cidades viventes,
Mães, coração sangrando, cortesãs ou santas,
Cujos nomes outrora ouviam-se frequentes,

Vós que fostes a graça ou que fostes a glória,
Ninguém vos reconhece! Um bêbado incivil
Insulta-vos passando de amor derrisório
Saltando aos calcanhares um moleque vil.

Pejadas de existir, sombras encarquilhadas,
Medrosas, recurvadas, vós beirais os muros;
E ninguém vos saúda, estranhas malfadadas!
Cacos de humanidade ao eterno maduros!

Vejo desabrochar os amores noviços.
Brilhantes ou sombrios, vi os perdidos dias;
Meu coração plural goza dos vossos vícios!
A minha alma resplende em vossas simpatias!

Ruínas! Familiares! Mentes irmãs, gregárias!
Dou-vos a cada noite o mais solene adeus!
Amanhã estarei onde, Evas octogenária,
Sobre quem pesa a garra espantosa de Deus?

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Eponina é uma heroína gaulesa - símbolo de bravura e fidelidade conjulgal -, que protegeu o marido, que estava sendo perseguido por se rebelar contra o domínio romano na Gália. Quando ele foi descoberto e condenado à morte pelo imperador Vespasiano, Eponina suplicou a ele que também a executassem. (N. do E.)
²O Terraço de Frascati, localizado na esquina da rua Richelieu, no Boulevard Montmartre, era um elegante estabelecimento da moda, que encerrou suas atividades em 1836. (N. do E.)
³As Vestais eram as sacerdotisas - obrigatoriamente virgens e patrícias - que se consagraram ao culto da deusa romana Vesta. (N. do E.)
4Filha de Zeus e Mnemósine, Tália é uma das noves musas gregas - a musa da Comédia. (N. do E.)
5Hipogrifo é um animal mitológico grego, metade cavalo, metade grifo (outro animal imaginário, com cabeça de água e garras de leão). (N. do E.)

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