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sexta-feira, 31 de março de 2017

LXXVII - Spleen

*O nome do poema é "Spleen" então, para diferenciar dos demais, apenas o nome do poema ficará como título e o número do poema.
*Há 4 poemas de nome "Spleen" na seção "Spleen e Ideal", então o diferencial será o número do poema como venho também o enumerando aqui no blog.

LXXVII - Spleen

Eu sou como o monarca de país chuvoso,
Rico, mas impotente, jovem, mas idoso,
Que, dos seus mestres desprezando os vãos caprichos,
Se enfada com seu cão e com os outros bichos.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo morrendo face ao seu balcão.
Do bufão favorito a grotesca balada
Do doente não distrai a fronte já enrugada;
Em tumba se transforma o seu leito florido
E as damas para quem todo príncipe é lindo,
Buscam em vão um traje que, nada discreto,
Possa tirar sorriso do jovem esqueleto.
O sábio que lhe faz ouro não tem podido
De seu ser extirpar o que há de corrompido,
E nos banhos de sangue que Roma legou,
De que cada velhinho sempre se lembrou,
Não soube reaquecer o cadáver inerte
Onde corre, não sangue, mas a água do Letes¹.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Na mitologia grega, Letes, localizado no mundo ctônio, era o rio de cujas águas bebiam os mortos para se esquecerem da vida anterior. o termo lete provém de um verbo grego que significa "esquecer". (N. do E.)

quinta-feira, 30 de março de 2017

LXXVI - Spleen

*O nome do poema é "Spleen" então, para diferenciar dos demais, apenas o nome do poema ficará como título e o número do poema.
*Há 4 poemas de nome "Spleen" na seção "Spleen e Ideal", então o diferencial será o número do poema como venho também o enumerando aqui no blog.

LXXVI - Spleen

Tenho lembranças mais que tivera  mil anos.

Móvel grande, gavetas de planos lotadas,
Versos, meigos bilhetes, processos, romanças,
Envoltas em recibos, há pesadas tranças,
Que têm menos segredos que a mente magoada.
É como uma pirâmide, imenso porão,
Mais que em vala comum, ali mortos estão.
- Eu sou um cemitério da lua odiado,
Onde, como remorso os vermes se arrastam,
Que os meus mortos mais caros sempre mais atacam.
Sou velho aparador com rosas desbotadas,
Onde jazem ruínas de modas passadas,
Onde os pastéis chorosos e Boucher¹ apagados,
Sós, respiram o odor de um frasco destapado.

Nada iguala em langor os dias claudicantes
Quando, aos pesados flocos dos anos nevados,
O tédio, que é fruto da incuriosidade,
Assume as proporções da imortalidade.
- Doravante, não és, ó matéria vivente!
Senão granito em meio a um espanto ingente,
Escolhido no fundo de Saara brumoso;
Velha esfinge ignorada do mundo ocioso,
Esquecida no mapa e cujo humor valente
Só canta sob os raios do sol no poente.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹François Boucher (1703-1770), pintor francês. (N. do E.)

quarta-feira, 29 de março de 2017

LXXV - Spleen

*O nome do poema é "Spleen" então, para diferenciar dos demais, apenas o nome do poema ficará como título e o número do poema.
*Há 4 poemas de nome "Spleen" na seção "Spleen e Ideal", então o diferencial será o número do poema como venho também o enumerando aqui no blog.

LXXV - Spleen

Pluvioso¹, na cidade inteira, muito irado,
De sua urna lança um frio tenebroso,
Aos pálidos ali do cemitério ao lado
E a mortalidade aos bairros nebulosos.

Meu gato, pelo chão buscando onde deitar,
Agita sem repouso o corpo rabugento;
A alma de algum poeta, na calha a errar,
Fala com triste voz de fantasma friorento.

O bordão se lamenta, e a inflamada lenha
Acompanha em falsete a pêndula rouquenha,
Enquanto em jogo cheio de odores imundos,

De hidrópica senhora, herança em tempos maus,
O valete de copas e a dama de paus
Falam sinistramente de amores defuntos.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Pluvioso é o mês do calendário republicano implantado pela Revolução Francesa e extinto em 1806. Esse mês correspondia ao período que vai de 21 de janeiro a 19 de fevereiro. (N. do E.)

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXXIV - O sino trincado

É amargo e é doce, em noites hibernais,
Escutar junto ao fogo que palpita e fuma,
As lembranças distantes voltarem iguais,
Ao som dos carrilhões cantando em meio à bruma.

Bem ditoso é o sino de voz rigorosa
Que muito embora idosa, é alerta e violenta,
E lança fielmente a prece religiosa,
Como um velho soldado a velar sob a tenda!

Eu, minha alma é fiel, se em tristezas perdida
Quer de cantos povoar das noites o ar gelado,
Acontece que às vezes sua voz combalida

Parece o estertor de um ferido largado
Junto a um lago de sangue, num monte de mortos,
E que morre, parado, em imensos esforços.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

LXXIII - O tonel do ódio

O Ódio é o tonel das Danaides¹ tão frias;
A Vingança lançada aos braços rubros, fortes,
Em vão tenta lançar em suas trevas vazias
Grandes baldes de sangue e lágrimas dos mortos.

O Diabo vem no abismo buracos cavar,
Por onde vão vazar mil anos de suores,
Ainda que soubesse as vítimas alçar,
E para as pressionar dar aos corpos calores.

O Ódio é como um ébrio ao fundo da taverna,
Que sempre sente a sede nascer do licor
E se multiplicar como a hidra de Lerna²

- Mas bêbados felizes sabem o vencedor,
E o ódio é votado a essa estranha crueza:
Jamais poder dormir por debaixo da mesa.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

domingo, 26 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXXII - O morto alegre

Numa terra bem fértil, de lesmas povoada,
Quero cavar eu mesmo uma fossa profunda,
Onde eu possa à vontade esparramar a ossada
E no olvido dormir qual cação na água funda.

Testamentos detesto como as sepulturas;
Antes do que implorar uma lágrima ao mundo,
Vivo, iria chamar os corvos das alturas,
Para sangrar as pontas do meu corpo imundo.

Ó vermes! Sem orelhas e olhos, companheiros,
Olhai a vós chegar morto faceiro absorto;
Filósofos patuscos, da carniça herdeiros,

Pela minha ruína ide, pois, sem agrura,
E dizei-me se ainda há alguma tortura
Pra este corpo sem alma, em meio aos mortos, morto.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

sábado, 25 de março de 2017

Uma gravura fantástica - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXXI – Uma gravura fantástica

Tem o espectro tão raro por traje completo,
Grotescamente posto à fronte de esqueleto,
Só a diadema horroroso a carnaval cheirando,
Sem espora ou chicote, um cavalo esfalfando,
Um fantasma também, pangaré apocalíptico,
Que baba das narinas como um epiléptico,
Pelo espaço os dois vão, em busco do futuro,
E pisam o infinito com casco inseguro.
O cavaleiro um sabre reluzente passa
Sobre a plebe sem nome que o cavalo amassa,
E percorre, qual príncipe olhando a mansão,
Do cemitério imenso a fria solidão,
Onde jazem, do sol sob a luz branca e terna,
As pessoas da história antiga e da moderna.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXX – Sepultura
Se em noite pesada e sombria
Por caridade, um bom cristão,
Atrás de uma ruína fria
Vos enterra o corpo loução,

Na hora em que as castas estrelas
Fecham seus olhos sonolentos,
A aranha aí fará suas teias,
E a cobra porá seus rebentos;

E ouvireis, anos de enfiada,
Nessa cabeça condenada
Os uivos dos animais bravos

E das bruxas esfomeadas,
Dos velhos as farras ousadas
E dos biltres negros conchavos.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXIX – A música

A música, por vezes, me abraça qual mar
Rumo a branca estrela,
Sob um teto de bruma ou éter a brilhar,
Eu coloco à vela;

De peito para frente e de pulmões inflados
Qual se fosse uma tela,
Vou das ondas galgando o dorso encapelado
Que a noite me vela;

Em mim sinto vibrar todas essas paixões
De nau em cataclismo,
O bom vento, a borrasca e suas convulsões

Sobre o imenso abismo
Me embalam. Outras vezes, calmo, grande espelho
Do meu desespero!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXVIII – O cachimbo

Sou o cachimbo de um autor;
Vê-se, ao olhar-me a carinha
De cafrina¹ ou de abissínia²,
Que é patrão grão fumador.

Quando ele está com muita dor,
Eu fumo tal como a guarida
Onde se prepara a comida
Pra volta do trabalhador.

Eu nino o coração e abraço
Na rede azul e esvoaçante
Que sai da boca fumegante,

Eu enrolo um palheiro então
Que encanta e cura seu coração
E o espírito do cansaço.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Cafrina: nativa de certa região da África do Sul. (N. do E.)

²Abissínia: nativa da Abissínia (atual Etiópia). (N. do E.)

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXVII – Os mochos

Nos teixos negros em que habitam
Os mochos ficam em fileiras,
Tais como os deuses das fronteiras,
Faiscando olhos rubros. Meditam.

Sem se mexer se manterão
Até a melancólica hora
Em que, expulsando o sol, agora
Oblíquo, as trevas ficarão.

Sua atitude ao sábio um lema
Dá: é necessário que ele tema
O movimento e a multidão;

O homem ébrio em sombra a passar
Carrega sempre a punição
De querer mudar de lugar.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXVI – Os gatos

Os amantes febris e os sábios austeros
Amam igual, chegando à madura estação,
Os gatos meigos, fortes, da casa eles são
O orgulho, e assim como eles, friorentos, caseiros.

Amigos da ciência e voluptuosidade,
Procuram o silêncio e o horror da escuridão;
O Érebo¹ os tomaria por seus em missão
Se a cabeça pudessem baixar na humildade.

Assumem a cismar as nobres posições
Das enormes esfinges em suas solidões,
Que parecem dormir num sonhar infindável;

Os seus fecundos rins fagulhas a lançar,
E parcelas de ouro, de areia impalpável,
Estrelam vagamente o seu místico olhar.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.


¹Na mitologia grega, Érebo, um dos filhos de Caos, é o criador das Trevas, a personificação da escuridão. (N. do E.)

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXV – Tristezas da lua

É noite, a lua sonha ainda mais preguiçosa;
Tal como uma beldade em muitos travesseiros,
Que afaga com a mão distraída e dengosa,
Antes de adormecer, o contorno dos seios,

No dorso acetinado das moles nevadas,
Moribunda, se entrega a longas aflições,
E lança o olhar a brancas visões já passadas
Que sobem pelo azul tal como florações.

Às vezes nesse globo, em seu langor passiva,
Ela deixa escorrer a lágrima furtiva,
Um poeta piedoso, do sono inimigo,

Na palma da sua mão pega essa gota rala,
De brilhos irisados, fragmentos de opala,
E a põe no coração, do olhar do sol ao abrigo.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXIV – Soneto de outono

Ele diz, teu olhar, claro como cristal:
“Por ti, bizarro amante, que mérito eu teria?”.
- Sê charmosa e te cala! O coração que irrita
Tudo menos o antigo candor animal,

Não quer mostrar-te o seu segredo infernal,
Cantiga de ninar cuja mão ao sono invita,
Nem a negra legenda com a chama escrita.
Eu odeio a paixão e o espírito faz mal!

Amemo-nos suave. O amor em sua guarita,
Tenebroso, emboscado, tende o arco fatal.
Conheço esses engenhos e o velho arsenal:

Crime, loucura, horror! Pálida margarida!
Como eu tu não és nenhum sol outonal,
Ó minha branca, ó minha fria Margarida?


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXIII – A assombração

Como os anjos de rude olhar
À tua alcova vou voltar
E junto a ti irei chegando
Pelas sombras da noite entrando;

E te darei, morena amada,
Beijos com a lua gelada,
E mil carinhos de serpente
Em torno de fossa rampante.

Quando a manhã vier brilhar,
Acharás vago o meu lugar,
E até a noite sem calor.

Como outros por meiga atitude,
Sobre a tua vida e juventude,
Quero eu reinar pelo pavor.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXII - Moesta et errabunda¹

Diz-me, Ágata, às vezes teu coração voa
Longe do negro oceano da imunda cidade,
Para um outro oceano que o esplendor povoa,
Azul, claro, Ágata, às vezes teu coração voa?

O mar, o vasto mar, nos consola os labores!
Que demônio dotou o mar de rouco canto
A que acompanha o órgão do vento em rancores,
Dessa função alta e sublime de acalanto?
O mar, o vasto mar, nos consola os labores!

Carrega-me, vagão! Sequestra-me, fragata!
Longe! Longe! Aqui a lama é feita de clamores!
- É verdade que, às vezes, teu coração de Ágata
Diz: Longe dos crimes, remorsos e dores,
Carrega-me, vagão! Sequestra-me, fragata?

Tão longe como estais, ó éden perfumado,
Onde sob claro azul tudo é amor e alegria,
Onde tudo o que se ama é justo ser amado,
Onde em pura volúpia a alma se inebria!
Tão longe como estais, ó éden perfumado!

Mas aquele éden verde das paixões meninas,
As corridas, canções, beijos e ramalhetes,
Os violinos vibrando por trás das colinas,
Com canecas de vinho, à noite nos bosquetes,
- Mas aquele éden verde das paixões meninas,

O éden inocente, em seus furtivos gozos,
Está já mais lonjínquo que a Índia ou a China?
Talvez possa chamá-lo com gritos chorosos,
E animá-lo de novo com voz argentina,
O éden inocente, em seus furtivos gozos?

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LXI - A uma dama crioula

Nas terras perfumadas, do sol às carícias,
Conheci, sob o pálido de árvores douradas
E palmas de onde chove nos olhos preguiça,
Uma dama crioula em graças ignoradas.

Pálida e quente a tez, a bruna encantadora
No colo possui ares nobres, maneirados;
Alta e esbelta, ao andar como uma caçadora,
Seu sorriso é tranquilo e os olhos sossegados.

Se fôsseis, minha Dama, a essa terra de glória,
Pelas margens do Sena ou pelo verde Loire,
Bela digna de antigos palácios ornas,

Faríeis, ao abrigo de sombras secretas,
Brotar sonetos mil no coração dos poetas,
Que os vossos olhos iam logo escravizar.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LX - Franciscae meae laudes
(Louvores a minha Francisca)

Novis te catabo chordis,                             Cantar-te-ei em novas cordas,
O novelletum quod ludis                            Ó minha cabrita que brincas
In solitudine cordis.                                    Na solidão de meu coração.


Esto serdis implicata,                                  Está enfeitada de guirlandas,
O femina delicata,                                       Ó mulher tão deliciosa,
Per quam solvuntur peccata!                       Pra quem são os pecados remidos!


Sicut beneficum Lethe,                               Como de um benfazejo Letes,
Hauriam oscula de te,                                  Colherei beijos de ti,
Quӕ imbuta es magnete.                             Que estás impregnada de ímã.


Quum vitiorum tempestas                           Quando a borrasca dos vícios
Turbabat omnes semitas,                             Perturbava as rotas todas,
Apparuisti, Deitas,                                       Tu me apareceste, Deidade,


Velut Stella salutaris                                    Como estrela salutar
In naufragiis amaris...                                  Nos naufrágios mais amargos...
Suspendam cor tuis aris!                             - Erguerei meu coração em teus altares!


Piscina plena virtutis,                                   Piscina cheia de virtudes,
Fons ӕternӕ juventutis,                                Eterna fonte de juventude,
Labris vocem redde muitis!                          Devolve a voz a meus lábios mudos


Quod erat spurcum, cremasti;                       O que era vil, tu queimaste;
Quod rudius, exӕquasti;                                Rude, tu aplanaste;
Quod debile, confirmasti.                              Débil, tu afirmaste.


In fame mea taberna,                                     Na minha fome meu albergue,
In nocte mea lucerna,                                    Na minha noite minha lâmpada,
Recte me semper guberna.                            Guia-me sempre como é preciso.


Adde nunc vires viribus,                               Acresce agora forças às minhas forças,
Dulce balneum suavibus                               Doce banho perfumado
Unguentatum odoribus!                                De doces odores!


Meos circas lumbos mica,                             Brilha em torno de meus rins,
O castitatis lorica,                                          Ó cinto de castidade,
Aqua tincta seraphica;                                   Banhado em água seráfica;


Patera gemmis corusca                                  Taça brilhante de pedrarias
Panis salsus, mollis esca,                     Pão temperado em sal, delicada iguaria,
Divinum vinum, Francisca!                           Vinho divino, Francisca.

[Tradução (semântica) da tradução francesa de J. Mouquet]

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

LIX - Sisina¹

Imaginai Diana² em equipagem galante,
Percorrendo as florestas, batendo os balseiros,
Cabelo e colo ao vento, ébria de som gritante,
Soberba em desafios ao forte cavaleiros!

Vistes Théroigne³, amante da coragem,
Excitando ao assalto esse povo descalço,
De rosto e olhar de fogo, criando a personagem,
Galgando, espada à mão, escadas do palácio?

Assim como Sisina! Guerreira ladina,
De alma caridosa e também assassina;
Sua coragem voraz de pólvora e tambores,

Diante de suplicantes sabe baixar armas,
E o coração, talado pelas chamas e horrores,
Tem, para quem é digno, reserva de lágrimas.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Sisina: alusão à atriz Elisa Neri. (N. do E.)
²Diana: deusa da caça na mitologia romana, filha de Júpiter e Latona. (N. do E.)
³Anne-Josèphe Théroigne de Méricourt (1762-1817) é uma heroína da Revolução Francesa. Participou da Tomada da Bastilha e liderou a marcha que foi ao palácio de Versalhes a fim de trazer Luís XVI e sua família para julgamento em Paris pelo tribunal revolucionário. (N. do E.)

domingo, 12 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LVIII - Canção da tarde

Embora os cílios maldosos
Te deem esse jeito estranho
Que não é o de um anjo,
Bruxa de olhos carinhos,

Minha frívola, eu adoro-te,
Minha terrível paixão!
Com toda essa devoção,
Por seu deus, do sacerdote.

O deserto e o bosquedo
Perfumam-te as tranças rudes,
Tem tua cabeça atitudes
Do enigma e do segredo.

Tua carne é sempre cheirosa
Qual do turíbulo o entorno;
Encantas como um sol morno,
Ninfa quente e tenebrosa.

Ah! mesmo os filtros mais fortes
Não valem tua preguiça,
E conheces a carícia
Que faz reviver os mortos!

Tuas ancas são amorosas
De tuas costas e teus seios,
E encantas os travesseiros
Com tuas poses langorosas.

Às vezes, para acalmar
Tua raiva misteriosa,
Prodigalizas, bondosa,
O morder e o beijar;

Me rasgas, minha morena,
Com teu riso zombeteiro,
E pões em mim teu brejeiro
Olhar da lua serena.

Sob sapatos de cetim,
Sob teus pés de seda fina,
Ponho o que há de alegre em mim,
O meu gênio e a minha sina,

Minha alma por ti curada,
Por ti, toda luz e cor,
Grande explosão de calor
Nesta Sibéria gelada!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

sábado, 11 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LVII - A uma Madona

Ex-voto¹ ao gosto espanhol

Ó Madona, ó senhora, um altar vou erguer
Subterrâneo no fundo da minha desgraça,
E vou cavar num canto mais negro em meu ser,
Longe do anseio laico e do olhar de chalaça
Capela, azul e ouro toda marchetada,
Onde tu te erguerás, Estátua deslumbrada;
Com meus Versos polidos, de puro metal,
Sabiamente cravado em rimas de cristal,
Farei pra tua cabeça um enorme Diadema
E pelo meu ciúme, ó Madona suprema,
Mandarei te fazer um Manto, de maneira
Bárbara, dura e espessa, à prova de suspeita,
Que, como uma guarita, encerrar-te-á os encantos;
Não bordado de Pérolas, mas dos meus Prantos!
Teu Vestido será meu Desejo, a tremer,
Ondulante, o Desejo a subir e a descer,
Nas pontas se projeta, nos vales repousa,
E reveste de um beijo o corpo branco e rosa.
Far-te-ei do respeito os mais belos Calçados
De cetim pra teus pés divinos humilhados,
Que, os aprisionando num suave abraço,
Como um molde fiel guardarão o teu traço.
Se não puder, malgrado a arte dedicada,
Talhar para Escabelo uma Lua prateada,
Eu porei a Serpente a morder-me as entranhas
Sob os teus pés a fim que pises suas manhas,
Rainha vencedora e fecunda em reparos,
O monstro todo inchado de ódio e de escarros.
Verás os meus Pensares, Círios alinhados,
Ó Rainha das Virgens, no altar enfeitado,
De brilhos estrelando o teto azul pintado,
Olhar-te sempre com olhar afogueado;

E como tudo em mim te quer muito e te admira,
Tudo é Benjoim, e Incenso, o Olíbano, e Mirra,
E sempre rumo a ti, crista branca e alterosa,
Em Vapor subirá, minha alma tempestuosa.

Enfim, pra completar teu papel de Maria,
E pra mostrar que amor com barbárie se alia,
Volúpia negra! dos Pecados capitais,
Com remorsos algoz, farei sete Punhais
Bem afiados e, malabar insensível,
Tornando o mais profundo amor meta atingível,
Plantá-los-ei no teu Coração vacilante,
Coração soluçante, Coração jorrante.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Ex-voto: peça de cera ou outro material, quadro, inscrição, etc., que os fiéis põem na igreja, a fim de agradecer uma graça recebida. (N. do E.)

Canto de outono - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

LVI - Canto de outono

I

Logo mergulharemos nas trevas geladas;
Adeus, vivo clarão dos tão curtos verões!
Percebo cair já, em fúnebres pancadas,
A lenha barulhenta em pátios e porões.

Todo o inverno entrará no meu ser: o odiar,
Raiva, tremor, horror, labor duro e forçado,
E, assim como o sol no inferno seu polar,
Meu coração será bloco rubro e gelado!

Parece-me, embalado em assalto de sono,
Que se prega, apressado, algures, um caixão.
Pra quem? - Eis o outono; era ontem verão!
O ruído misterioso cai como abandono.

II

Amo a luz esverdeada desse vosso olhar,
Doce beleza, mas hoje tudo é engano,
E nada, vosso amor, nem a alcova ou o lar
Vale o sol resplendente por sobre o oceano.

E, entretanto, amei-me, terno coração!
Sede mãe, para um ingrato até, ou delinquente;
Irmã ou amante, sede a doce transição
De um glorioso outono ou de um sol poente.

Curta tarefa! A tumba ansiosa está ao dispor!
Ah! Deixai-me, no colo a fronte reclinada,
Haurir, saudoso, o estio branco e abrasador,
Do final da estação a luz suave e dourada!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LV - Conversa

Vós sois um belo céu de outono, claro e rosa!
Mas a tristeza em mim sobe assim como o mar,
E deixa, ao refluir, na boca vagarosa
Essa lembrança ardente do limo a amargar.

- Tua mão desliza em vão no meu seio pasmado,
O que ela busca, amiga, é um lugar destruído
Da mulher pela garra e pelo dente afiado.
Deixa meu coração, por feras foi comido.

Meu coração é um paço. em desordem largado;
Nele há quem se embriaga, mata, se escabela!
- Nada em teu colo nu um odor delicado!...

Ó Beleza, assim queres, tu que almas flagelas,
Com teus olhos de fogo, a brilhar como festas,
Calcina o que restou, poupado pelas bestas!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

O irreparável - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LIV - O irreparável

Podemos sufocar velho e longo Remorso,
Que vive, se agita e se farta
E se nutre de nós como o verme do morto
Como do carvalho a lagarta?
Podemos sufocar o implacável Remorso?

Em qual filtro, em qual vinho ou em qual infusão,
Afogar o velho inimigo,
Como uma cortesã, destruidor e glutão,
Paciente como uma formiga?
Em qual filtro, em qual vinho ou em qual infusão?

Diz, bela feiticeira, diz, se for sabido,
A essa alma de angústia cheia
E igual ao moribundo a que pisa o ferido,
Que o cavalo pisoteia,
Diz, cara feiticeira, diz, se for sabido,

A esse agonizante a que o lobo fareja
E a quem o urubu espreita,
A esse soldado roto! Se já não deseja
Ter cruz e tumba já feita;
O pobre agonizante que o lobo fareja!

Pode-se iluminar céu negro por acaso?
Podem rasgar-se escuridões
Mais densas do que a pez, sem manhã e sem ocaso,
Sem astros, raios ou trovões?
Pode-se iluminar céu negro por acaso?

A Esperança que brilha nas lajes do Albergue
Foi soprada, morta afinal!
Sem lua e sem clarões, achar onde se albergue
Mártires de via fatal!
O Diabo apagou tudo nas lajes do Albergue!

Feiticeira adorável, gostas dos danados?
Diz, conheces o irremissível?
Conheces o Remorso, em venenos traçado,
De quem somos alvo possível?
Feiticeira adorável, gostas dos danados?

O irreparável rói com suas presas malditas
Nossa alma, triste construção,
E por vezes a atacar, às térmitas igual,
Pela nossa base elas vão.
O irreparável rói com suas presas maldita!

- Vi por vezes ao fundo do teatro banal,
Que inflamava a orquestra sonora,
Uma fada acender em um céu infernal
Uma miraculosa aurora;
- Vi por vezes ao fundo do teatro banal

Um ser, que somente era clarão, ouro e gaze,
Pisar o enorme Satanás;
Mas o meu coração, que êxtases não tem quase,
É um teatro mesmo contumaz
Na espera, sempre em vão, do Ser de asas de gaze!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

LIII - Convite à viagem

Minha filha e irmã,
Vê, coisa louçã,
Juntos levarmos a vida!
Amar com lazer,
Amar e morrer
Na terra a ti parecida!
Esses sóis molhados
Desses céus toldados
Têm para minha alma encantos
Tão pertubadores
Dos olhos traidores.
Brilhando através dos prantos.

Lá, tudo é ordem, beldade,
Luxo e voluptuosidade.

Uns móveis polidos
Por anos seguidos,
Decorariam o quarto;
As mais raras flores
Mesclam seus odores
Do âmbar ao perfume farto,
Os tetos suntuosos,
Espelhos grandiosos,
O esplendor oriental,
Tudo ali diria
À alma arredia
Sua doce língua natal.

Lá, tudo é ordem, beldade,
Luxo e voluptuosidade.

Vê nos canais rasos
Dormir esses vasos
Cujo humor é vagabundo;
É pra saciar
O teu desejar
Que eles vêm do fim do mundo.
-Esses sóis poentes
Vestem as vertentes,
Os canais, toda a cidade,
De ouro e de jacinto;
O mundo dormindo
Está em quente claridade.

Lá, tudo é ordem, beldade,
Luxo e voluptuosidade.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Sujeira sob o papel

O sangue jorrou sobre meu rosto
Quando você olhou-me
O sangue manipulado e seco
Tu sabes a que é
Sua ignorância e fingimento nunca ofenderão a minha ingenuidade
Assim como nunca tocará minha face novamente
O lixo pronto a ser servido por mim
O meu sorriso se desfez.

Mais uma vez minha mente gira sobre isso
E mais uma vez o desprezo
Tão profundo
Imerge e irradia para depois secar e permanecer.
Assim como a água, permanece imutável, só muda de estado, mas continua lá,
sempre lá.

Sob qual luz você está? Pois estou na escuridão
A escuridão da qual deveria ser desejada
Não luzes que cegam.
Os holofotes mostram apenas a você
Não queira me contaminar com uma fresta de luz
Desejo-lhe não a luz, mas o sangue que permanece em mim.
Se um dia você o merecer e não o negar.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

LII - O belo navio

Eu quero te contar, ó mole encantadora!
As belezas que em tua juventude afloram;
Quero pintar tua beldade,
Feita de infância como de maturidade.

Quando varres o ar com teu vestido largo,
Tens o efeito de um barco que se põe ao largo,
Levando estofos, vai ao vento
Seguindo um ritmo suave, e preguiçoso, e lento.

Em teu colo redondo, em tuas espáduas grassas,
Tua cabeça expõe-se com estranhas graças;
Com jeito plácido e triunfante
Vais teu caminho, majestosa infante.

Eu quero te contar, ó mole encantadora!
As belezas que em tua juventude afloram;
Quero pintar tua beldade,
Feita de infância como de maturidade.

O teu colo que avança e que empurra o tecido,
O teu colo triunfante é um armário bonito
Cujos flancos arqueados, claros
Como escudos que aos raios servem de anteparos;

Escudos provocantes, com pontas rosadas!
Armário de segredos, com coisas prezadas,
Com vinhos, perfumes, poções
De fazer delirar crânios e corações!

Quando varres o ar com teu vestido largo,
Tens o efeito de um barco que se põe ao largo,
Levando estofos, vai ao vento
Seguindo um ritmo suave, e preguiçoso, e lento.

Tuas nobres pernas sob as pregas aparecem
E atormentam desejos obscuros que aquecem.
Como duas bruxas que acaso
Girar um filtro¹ negro num profundo vaso.

Teus braços que zombavam dos hércules² precoces,
São das boas luzentes êmulos ferozes,
Com jeito plácidos e triunfante
Segues o teu caminho, majestosa infante.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Filtro (do grego, phíltron) na acepção de poção mágica para despertar o amor de quem a bebe. (N. do E.)
²Hércules precoces: alusão ao episódio da mitologia grega em que Hércules, ainda no berço, estrangulou as serpentes enviadas por Hera, a ciumenta esposa de Zeus. (N. do E.)

domingo, 5 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

LI - O gato

I

Dentro em meu cérebro se move,
Tal como no seu próprio lar,
Belo gato, forte, exemplar.
Quando ele mia, mal se ouve,

Tão meigo e discreto é seu tom;
Mas que sua voz ralhe ou agrade,
Tem riqueza e profundidade:
É o seu segredo e sedução.

Essa voz que orvalha e se infiltra
No meu imo mais tenebroso
Enche-me, verme numeroso,
E me alegra como um filtro.

Ela acalma as mais cruéis doenças,
E os êxtases todos contém;
E pra dizer longas sentenças,
Mister de palavras não tem.

Não, arco nenhum há que morda
Meu coração, fiel instrumento,
E faça mais regiamente
Cantar sua mais vibrante corda,

Que tua voz, gato misterioso,
Gato seráfico e estranho,
Em quem tudo é, como em anjo,
Tão sutil, tão harmonioso!

II

De sua pelagem loira e bruna
Odor tão suave se desprende
Que fiquei cheiroso somente
Por afagá-lo uma vez, uma.

É espírito que a casa invade;
Julga, preside e leva a sério
Cada coisa do seu império,
Quem sabe é fada ou divindade?

Quando o gato que amo, a esmo,
Como um imã puxa-me o olhar,
Fazendo-o insensível voltar
E eu olho dentro de mim mesmo,

Percebo deslumbrantemente
O fogo de suas íris pálidas
Claros fanais, vivas opalas
Que me contemplam fixamente.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Céu turvado - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

L - Céu turvado

Dir-se-ia teu olhar de um vapor ocultado;
Teu olho misterioso (é azul, cinza, esverdeado?)
Alternativamente doce, cruel, ao léu,
Refletindo a indolência e o palor do céu.

Lembras os dias brancos, mornos e velados,
Que em pranto fundem corações enfeitiçados,
Quando os agita mal incógnito e premente,
Nervos despertos zombam da alma dormente.

Assemelhas, assim, horizontes sem véu
A que alumiam sóis das estações brumosas...
Como resplandeceis, paisagens chuvosas,
A que afogueia a luz de um já toldado céu!

Ó mulher perigosa, ó climas sedutores!
Adorarei assim tuas neves e rigores,
E saberei tirar do inverno mais severo
Prazeres mais agudos que o gelo e o ferro?

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

O veneno - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

XLIX - O veneno

Sabe o vinho vestir o covil mais imundo
De um luxo miraculoso,
E faz surgir mais de um pórtico fabuloso
No ouro rubro e vaporoso,
Tal como um sol ao fim de céu profundo.

O ópio aumenta aquilo que não tem limites,
Alonga o que não tem fim,
Torna o tempo mais fundo, escavando apetites,
E de prazer negro e ruim
A alma enche muito além do que ela permite.

Tudo isso não vale o veneno brotando
Dos teus olhos, olhos verdes,
Lagos onde minha alma treme e tudo inverte...
Meus sonhos chegam em bandos
Pra se desalterar nesses pegos nefandos.

Tudo isso não vale essa terrível sorte
Da tua saliva que morde,
Que a minha alma ao olvido atira sem piedade
E acarretando a insanidade,
A rola moribunda às beiradas da morte.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XLVIII - O frasco

Há perfumes tão fortes que objeto qualquer
Lhes é perigoso. Podem mesmo se meter
Pelo vidro. Ao abrir um cofrinho do Oriente
O fecho barulhento range fortemente,

Ou em casa deserta armário do passado,
Cheio do acre odor dos tempos, negro, empoado,
Acha-se às vezes algum frasco que recorda,
De onde brota bem viva uma alma que retorna.

Mil pesares dormiam, fúnebres crisálidas,
A tremer suavemente nessas trevas pálidas,
Que suas asas abrem e ao céu são alçados,
Marchetados de azul, rosa e de ouro incrustados.

Eis aí as lembranças que ébrio voo atingem
No ar turvado; olhos se fecham; a Vertigem
Torna a alma vencida e a empurra com as mãos
Para o vórtice escuro dos miasmas humanos;

Ele a esmaga junto a abismo secular,
Onde Lázaro olente, o sudário ao rasgar,
Move ao se despertar o defunto espectral
De velho amor rançoso, encanto sepulcral.

Assim, quando estiver perdido na memória
Dos homens, num cantinho de sinistro armário,
Quando for atirado, frasco desolado,
Decrépito, poeirento, abjeto, fissurado,

Serei o teu esquife, amável pestilência!
Testigo da tua força e tua virulência,
Caro veneno feito por anjos! Licor
A me roer, ó vida e morte de meu cor!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

XLVII - Harmonia da tarde

Eis o tempo chegando em que na haste a vibrar
Como incensório vai-se evaporando a flor;
Os perfumes e os sons no ar da noite a girar;
Melancólica valsa e êxtase de langor!

Como incensório vai-se evaporando a flor;
O violino freme, coração aflito,
Melancólica valsa e êxtase de langor!
E o céu é belo e triste ostensório infinito.

O violino freme, coração aflito,
Coração terno a odiar o nada negro e vasto!
E o céu é belo e triste ostensório infinito.
Foi-se o sol se afogando em sangue coagulado!

Coração terno a odiar o nada negro e vasto!
Colhe todo vestígio do passado em luz!
Foi-se o sol se afogando em sangue coagulado!
Tua lembrança em mim como ostensório luz.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

XLVI - A Alba espiritual

Quando dos debochados o arrebol rosado
Faz sociedade com o Ideal que é roedor,
Mediante operação de arcano vingador
Na besta adormecida um anjo é despertado.

Dos Céus Espirituais o azul inebriante,
Para o homem arrasado que ainda pena e sonha,
Se abre e se aprofunda com atração medonha.
Assim, Deusa querida, Ser puro e brilhante,

Em restos fumegantes de estúpida orgia,
Tua lembrança mais clara, mais rósea, exemplar,
Aos meus olhos bem grandes gira sem parar.

O sol escureceu das velas a luz fria;
Assim, vencedor sempre, o teu vulto é igual,
Alma resplandecente, a esse sol imortal!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.