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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XVII - Beleza

Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra,
E meu seio onde, cada um por vez, se feriu,
Para inspirar amor ao poeta tem feitio,
Eterno e mudo assim como toda matéria.

Meu trono é lá no azul, como esfinge ignorada;
A um coração de neve alio do cisne a alvura
Odeio o deslocar que os traços desfigura,
E nunca choro e nunca sorrio por nada.

Os poetas, ante minhas grandes atitudes,
Que pareço tomar dos monumentos grandes,
Consumirão a vida em austeros estudos;

Tenho pra fascinar esses dóceis amantes.
Puros espelhos que tornam as coisas lindas,
Meus olhos grandes com claridades infindas!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

XVI - Castigo do orgulho

No tempo extraordinário em que a Teologia
Floresceu com mais seiva e com mais energia,
Dizem que certo dia um doutor eminente,
- Depois de ter forçado os corações descrentes;
De ter-lhes revolvido as negras profundezas
Dos ímpares caminhos dele não sabidos,
Que só espíritos puros tinham percorrido -,
Como homem que, no alto, tolhido de pânico,
Num ímpeto, gritou, com orgulho satânico:
"Jesus, ó Jesusinho! Elevei-te bem alto!
Mas quisera eu tocar-te no que tens de falto
Na armadura, o teu pejo igualaria a glória,
E não serias mais que cria derrisória!".
Imediatamente a razão lhe faltou.
O brilho desse sol de um luto se velou,
Todo o caos penetrou naquela inteligência,
Outrora templo vivo de ordem e opulência,
Sob os tetos do qual tantas pompas brilharam,
Nele o silêncio agora e a noite se instalaram.
Como se fosse um porão cuja chave é perdida,
Então ficou igual aos bichos da avenida,
E, quando ele se ia embora nada vendo
Pelos campos, iguais inverno e verão sendo,
Sujo, imundo e feioso como coisa usada,
Era da criançada objeto de risada.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XV - Dom Juan nos infernos

Quando desceu Dom Juan ao subterrâneo rio,
E o óbolo ofertou a Caronte¹, esmoleiro
De sobranceiro olhar, Antístenes² sombrio,
Cada remo tomou, braço forte e traiçoeiro.

Os seios a pender e as vestes entreabertas,
Mulheres se torciam sob o céu cinzento,
E como enorme grei de vítimas ofertas,
Atrás dele arrastavam bestial lamento.

Sganarello³, em riso, exigia-lhe as pagas,
Enquanto Dom Luís 4, com o dedo a tremer,
Mostrava a cada morto errante pelas plagas
O filho que das cãs ousara escarnecer.

Trêmula no seu luto, Elvira 5, magra e casta,
Junto ao pérfido esposo, amante seu que fora,
Parecia dizer-lhe que um sorriso basta
Em que brilhe o calor de uma jura de outrora.

Ereto na armadura, homem de pedra, ingente,
Segurando o timão, cortava a onda sombria;
Mas esse manso herói, sobre a espada pendente,
Olhava, em devaneio, a esteira, e nada via.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Na mitologia grega, Caronte era o barqueiro que atravessava os mortos para a outra margem do rio, na passagem destes para o Hades. Por essa viagem, devia-se pagar um óbolo a Caronte. (N. do E.)
²Antístenes (445-365 a.C.), discípulo de Sócrates, para quem o bem supremo era a vida ascética e conforme à virtude. (N. do E.)
³Na peça de Molière, Sganarello é o criado de Dom Juan. Trata-se de um personagem com traços cômicos, que defende a religião. (N. do E.)
4. Dom Luís é o pai de Dom Juan, na peça de Molière. (N. do E.)
5. Elvira é uma das mulheres seduzidas e abandonadas por Dom Juan. (N. do E.)

sábado, 28 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XIV - O homem e o mar.

Homem livre, terás pelo mar sempre amor!
O mar é teu espelho; contemplas a tua alma
No infinito rolar de sua lâmina calma,
A tua alma não tem um menor amargor.

Gostas de mergulhar no fundo de tua imagem;
Tu o abraças com o olhar, braços, teu coração
Às vezes se distrai com seu ruído vão
Ao som desse queixume indomável, selvagem.

Vós ambos tenebrosos sois, também discretos,
Homem, ninguém sondou as tuas profundezas,
Ó mar, ninguém conhece as tuas imas riquezas
Tão ciosos vós sois de guardar os segredos!

No entanto, desde séculos inumeráveis
Combateis um ao outro sem remorso ou pena
De tanto que gostais dessa matança extrema,
Ó eternos lutadores, ó irmãos implacáveis!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XIII - Ciganos em viagem

A profética tribo de olhares ardentes
Ontem se pôs na estrada, as crianças levando
Às costas, ou ao seu apetite deixando
Os tesouros das mamas sempre balançando.

Os homens vão a pé, sob as armas luzentes,
Das carretas ao longo, onde estão amontoados
O céu a percorrer com olhares cansados
Pelo tíbio pesar de quimeras ausentes.

Do reduto arenoso um grilo de plantão,
Ao olhá-los passar, reforça a sua canção;
Cibele, que os ama, aumenta as suas verduras,

Faz verter o rochedo e florir o deserto
Diante dos viajores a quem é aberto
O familiar império  das trevas futuras.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XII - A vida interior

Muito tempo habitei sob os pórticos altos
Que os sóis marinhos vinham tingir de mil fogos,
E em que grandes pilares, retos, majestosos,
À noite se faziam grutas de basalto.

As imagens do céu a rolas nos abrolhos
Mesclavam de maneira mística e solene
Os possantes acordes da música infrene
À cor do sol poente espelhada em meus olhos.

Foi ali que vivi nas volúpias mais calmas
No meio desse azul, das vagas, de esplendores
E dos escravos nus impregnados de odores,

Que a fronte, me abanando, esfriavam com palmas,
E que tinham  por fim único aprofundar
O segredo dolente a gerar meu penar.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Sintetizado clamor

Sob as margens da consciência
Adotou-se o esquecimento
Tão rápido e lívido
Trouxe algo pior

O nada!

Tão rápido
Não vi seu aparecimento
Do silêncio e da dor nasceram

A resposta e o conflito fizeram nascer a falta
E dentre todos os adjetivos e combinações possíveis
Fizeram-se tão desejadas.

Mas quem pode dizer serem tão desejadas?
O que foi feito deve permanecer
E o nada não é realmente nada
Apenas infundado
Mas em seu interior habita os sentimentos
Protegidos pelo nada.

O vazio vem como arma e conciliador para tanta dor
A consciência escolheu.
O povo escolheu a lembrança
Sua voz é forte

E a minha inaudível.

Os gritos extenuantes tornaram-se o silêncio da minha face
As paredes são minha consciência
Imóveis
Protetoras
E Mudas.

Para que tantos gritos?
Para eles não pararem de questionar?
Para não oferecerem a si mesmos?
Oferecerei a mim mesmo a mim.
O único tributo que necessito.

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XI - O azar.

Pra que alto o peso se leve
Sísifo,¹ é mister teu ardor!
Embora haja empenho e labor,
A Arte é longa e o Tempo é breve.

Longe das tumbas alto erguidas,
Rumo a cemitério isolado,
Meu coração, tambor velado,
Dá em marcha fúnebre as batidas.

- Há tanta joia sepultada
E em meio às trevas olvidada,
Longe de pás e de enxadões;

Muita flor esparge com medo
Do perfume seu o segredo
Nas mais profundas solidões.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Sísifo é o personagem da mitologia grega que, por ter ludibriado e ofendido alguns deuses, como Zeus, Ares e Hades, foi condenado, por toda a eternidade, a rolar uma grande pedra até o cume de uma montanha, mas, quando a tarefa estava quase chegando ao fim, a pedra voltava ao ponto de partida. Assim, Sísifo recomeçava seu trabalho que jamais tinha fim nem servia para coisa alguma. (N. do E.)

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

X - O Inimigo.

A mocidade foi-me uma borrasca escura,
Atravessada às vezes por sóis a brilhar;
Fizeram tal estrago o trovão e a chuva,
Que pouca fruta resta agora em meu pomar.

Eis que toquei enfim o outono das ideias,
E que a pá e o rastelo preciso empregar
Para junto de novo as terras de águas cheias
Onde vem como tumbas a chuva cavar.

E quem sabe se acaso de meu sonho a flor
Achará neste solo qual praia lavado
O místico alimento que lhe dá vigor?

- Ó dor! Ó grande dor! O tempo engole a vida,
E o Inimigo obscuro que a alma tem tragado
Do sangue que nos rouba cresce e se valida!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

IX - O mau monge

Os claustros do passado em muralhas esguias
A exibir em painéis a mais santa Verdade,
Cujo efeito, aquecendo as suas entranhas pias,
Temperava a frieza em sua austeridade.

No tempo em que de Cristo a messe florescia,
Mais de um ilustre monge, hoje na obscuridade,
Que do campo funéreo o ateliê fazia,
Glorificando a Morte com simplicidade.

- Minha alma é uma cova que, mau cenobita,
Desde a eternidade ela percorre e habita;
Nada enfeita as paredes do claustro de horror.

Ó monge sempre ocioso! Eu quando hei de saber
Fazer da viva cena do meu padecer
Meu trabalho das mãos, de meus olhos o amor?


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

VIII - A musa venal

Ó musa de minha alma, amante dos palácios,
Terás, quando janeiro lambe os Boreais,
Durante o negro tédio em noites hibernais,
Um tição para aquecer teus dois pés violáceos?

As marmóreas espáduas reanimarás
Na friagem noturna em frestas a passar?
Sentindo seca a bolsa e assim o paladar
Das cerúleas ogivas o ouro colherás?

Precisas, pra ganhar de cada noite o pão,
Tal como um coroinha, o turíbulo na mão,
Tantos Te Deum cantar sem mesmo acreditar.

Ou, palhaço em jejum, seus dotes exibidos
E teu riso molhado em pranto não sabido
Para desopilar o baço do vulgar.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

VII - A musa doente

Ó minha pobre musa, esta manhã, que tens?
Teus olhos fundos têm tantas visões noturnas,
E vejo cada vez refletir-se em tua tez
A loucura e a repulsa, frias, taciturnas.

O súcubo verdoendo e o róseo diabrete
Deitaram-te esse medo e esse amor taciturno?
O mau sonho, com punho audaz e irreverente,
Afogou-te imergindo em estranho Minturno?¹

Quisera que exalado o odor da saúde
Teu seio ideias fortes guardasse amiúde
E o teu sangue cristão fluísse em vagas iguais,

Como os múltiplos sons das vozes ancestrais,
Em que alternam o pai das canções desde outrora,
Febo, e o grande Pã, o senhor da lavoura.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹ A cidade antiga de Minturno (Minturnae) surgiu na Via Ápia, perto do rio Garigliano. Passou a se chamar Traetto depois de ser destruída, entre 580 e 590, pelos lombardos, só retomando seu antigo nome em 1879. (N. do E.)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

VI - Os faróis

Rubens¹ rio de olvido, jardim da preguiça,
Coxim de carne fresca impossível de amar,
Mas onde a vida aflui e sempre rebuliça,
Como o ar pelo céu e o mar pelo mar;

Leonardo da Vinci², fundo e escuro espelho,
Onde anjos encantados, a sorrir gentis
Repletos de mistério, em sombras deixam vê-los
Em geleiras, pinhais que fecham seu país;

Rembrandt³, triste hospital repleto de murmúrios,
E com um crucifíxo a orná-lo simplesmente,
Onde a oração em pranto exala dos monturos,
E de um raio de inverno cruzado bruscamente;

Miguel Ângelo4, vago onde Hércules se veem
Mesclaram-se a Cristos, e se erguerem eretos
Poderosos fantasmas que à meia-luz vêm
Rasgar os seus sudários estirando os dedos;

Impudências de fauno, iras de lutador,
Tu que juntar soubeste o brilho do garoto,
Coração só de orgulho, homem débil, sem cor,
Puget5, sombrio rei dos forçados do porto;

Watteau6, o carnaval ou corações ilustre,
Iguais a borboletas, vagam a faiscar,
Cenários frescos, leves, banhados por lustres
Que derramam loucura a esse baile a girar;

Goya7, mau sonho, coisas não sabidas,
No meio dos sabás fetos cozinhando,
Velhas diante do espelho e crianças despidas,
Para os demos tentar as meias ajustando;

Delacoix 8, mar de sangue cheios de maus anjos,
Sombreado por bosque e por verdes pinhais,
Onde um céu de amargor e músicos estranhos
Passam como de Weber 9 mal contidos ais;

Essas queixas, blasfêmias, essas maldições,
Esses êxtases, gritos, prantos, os Te Deum 10,
São eco repetido em perdidos rincões,
E para corações mortais, divino opium!

É grito repetido por mil sentinelas!
É por mil porta-vozes ordem replicada;
É acendido farol sobre mil cidadelas,
De caçador apelo na mata fechada!

Pois é mesmo, Senhor, o melhor atestado
Que nós possamos dar da nossa dignidade
Que esse ardente soluço a rolar no passado,
Venha morrer bem rente à vossa eternidade!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Peter Paul Rubens (1577-1640), pintor flamengo de estética barroca. (N. do E.)
²Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um polímato italiano, que se destacou nas ciências e nas artes. É considerado um dos maiores expoentes do Renascimento e um dos maiores pintores de todos os tempos. (N. do E.)
³Rembrandt Harmenszoon van Rijin (1606-1669), pintor holandês de estética barroca. (N. do E.)
4Michelangelo (outra grafia: Miguel Ângelo) di Lodovico Buonarroti Simoni (1475-1564), arquiteto, escultor e pintor italiano. (N. do E.)
5Pierri Puget (1620-1694), escultor francês de estética barroca. (N. do E.)
6Jean-Antoine Watteau (1684-1721), pintor francês de estética rococó. (N. do E.)
7Francisco José de Goya y Lucientes (1726-1828), pintor e gravador espanhol. (N. do E.)
8Ferdinand-Victor Eugène Delacoix (1798-1863), pintor francês do Romantismo. (N. do E.)
9Carl Maria Friedrich Ernest von Weber (1786-1826), músico alemão, teórico do Romantismo, compositor da primeira ópera romântica alemã, Der Freischutz. (N. do E.)
10 Te Deum: hino litúrgico da igreja católica; a primeira linha completa é Te Deum Laudamus ("A Vós, Deus, louvamos"). O nome passou a designar também a cerimônia que acompanha essa ação de graças. (N. do E.)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

V

Eu gosto de lembrar essas despidas eras,
De que Febo¹ em dourar as estátuas se esmera.
Então o homem e a mulher em sua agilidade
Gozavam sem mentira e sem ansiedade,
E, o amoroso céu a acariciar sua espinha,
O nobre corpo seu exercitando vinha.
Fértil, Cibele² então, em seus dons generosos,
Não achava seus filhos pesos onerosos,
Mas, loba, coração inchado de ternuras,
Aleitava o universo em suas tetas escuras.
O homem, elegante, audaz, tinha o direito
De orgulhar-se do que o rei havia feito;
Frutos sem um ultraje e sem bordas fendidas,
De pele lisa e firme a chamar as mordidas!

O poeta hoje em dia, ao querer conceber
As nativas grandezas, onde se pode ver
A nudeza do homem como a da mulher,
Sente um frio tenebroso a sua alma envolver
Diante do negro quadro repleto de espanto.
Ó monstruosidade a chorar por um manto!
Ó ridículos troncos! torsos mascarados!
Ó pobres corpos tortos, magricelos, flácidos
Que o deus do Útil foi que, implacável, sereno,
Com fraldas de latão envolveu em pequenos!
E vós, mulheres, pálidas qual fossem velas,
Que rói e nutre a orgia, e também vós, donzelas,
Que do vício materno a triste herança invade,
E todas as feiuras da fecundidade!

Nós temos, é verdade, nações corrompidas,
Belezas dos antigos povos não sabidas:
Rostos roídos pelos cânceres do cor,
E como - quem diria - as graças do langor;
Mas essas invenções das musas já tardias
Jamais impedirão as raças doentias
De aos jovens prestar homenagem eterna,
À santa juventude, as simples, fronte amena,
Olhar límpido e claro como a água corrente,
E que vai espalhando em tudo, displicente
Como azul do céu, os pássaros e as flores,
Seus perfumes, canções e os mais doces calores!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Febo: ("luminoso") é o deus que personifica a luz, a música, a beleza, da mitologia romana, filho de Júpiter e Latona. (N. do E.)
²Cibele é uma deusa originária da Frígia, mas também associada à "Deusa-Mãe" minoica, remontando, nesse caso, ao período neolítico. Seu culto espalhou-se pela Grécia e por Roma, tendo sido mencionado por Virgílio, Catulo, Lucrécio e Ovídio. (N. do E.)

domingo, 15 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

IV – Correspondências

A natureza é um templo onde vivos pilares
Por vezes dão a ouvir palavras muito estranhas;
Nas florestas de símbolos o homem se emaranha
Que o observam com olhos bem familiares;

Tais como longos ecos que ao longe se escondem
Em uma tenebrosa e profunda unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
As cores, os perfumes e os sons  se respondem.

Perfumes frescos há, como carnes infantes,
Doces como oboés, verdes como campinas,
- E outros, corrompidos, ricos e triunfantes,

Tendo aquela expansão das coisas infinitas
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim, o incenso,
Transportes a cantar do espírito e do senso.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

III – Elevação

Bem acima do vale, acima dos banhados,
Das montanhas, dos bosques, das nuvens, dos mares,
Além do sol, além dos etéreos lugares,
Bem além dos confins dos mundos estrelados,

Meu espírito, moves-te em agilidade,
E, como o nadador na onda vagabundo,
Trilhas alegremente o pélago profundo
Com macha e imbecil voluptuosidade.

Deixa ficar bem longe os miasmas deletérios
Vai te purificar no ares superiores,
E bebe como puros, divinos licores
O fogo que preenche os espaços etéreos.

Por trás dos dissabores e mágoas que temos
Que vergam com seu peso a existência brumosa,
Feliz de quem possui uma asa vigorosa
Para lançar-se aos campos claros e serenos;

Quem tem os pensamentos como a cotovia,
Que para os céus bem cedo o seu voo já estende,
- Quem plana sobre a vida e sem esforço entende
A linguagem da flor e do que silencia!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudalaire

II - O albatroz

Às vezes pra brincar os homens da equipagem
Prendem um albatroz, ave imensa dos mares,
Indolente a seguir amigo de viagem.
O barco a deslizar por salobros lugares.

Apenas colocados nas pranchas cinzentas,
Esse rei do infinito, acanhado, sem jeito,
Deixa pender as asas grandes e alvacentas

O viajor alado é canhestro e esquisito!
Ele, tão feio agora, há pouco lindo estava!
Um cutuca-lhe o bico com pequeno pito,
Outro imita, mancando, o coxo que voava!

O Poeta é assim como esse rei dos ares
Que frequenta a borrasca, do arqueiro a zombar;
Exilado no chão entre chistes vulgares,
As asas de gigante impedem-no de andar.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

I - Benção

Quando por decisão das potências supremas,
Vem o poeta a este mundo, enfastiado,
Sua mãe espantada e cheia de blasfêmias
Crispa o punho a Deus, que poe ela é tocado.

- Ah! por que não pari um rolo de serpentes,
Em vez de dar a luz tamanha derrisão!
Maldita seja a noite em gozo inconsequente
Quando gerou meu ventre a minha expiação!

Posto que me escolheste entre mulheres tantas
Para servir de opróbrio ao meu triste marido,
E que lançar não posso simplesmente às chamas,
Qual bilhete de amor, o monstro ressequido,

Farei jorrar tua ira em que estou oprimida
Sobre o instrumento mau dos teus atos malvados
E vou torcer tão forte essa árvore maldita
Que não mais nascerão seus brotos empesteados!

Ela volta a engolir da ira o caldo imundo,
E, como não entende os desígnios eternos,
Ela mesma prepara da Geena¹ ao fundo
As fogueiras votadas aos crimes maternos.

Entretanto, por Anjo invisível guardado,
O Filho deserdado de sol se embriaga,
E encontra a ambrosia e o néctar dourado
Em tudo o que ele come, e em tudo que ele traga,

Com a nuvem conversa e brinca com o vento,
Em meio à via sacra a cantar se inebria;
E o Espírito que o segue a seu vagar atento
Sofre de o ver cantar qual pássaro à porfia.

Todos que quer amar observam-no com medo,
Ou se valendo então de sua tranquilidade,
Disputam para ver quem lhe arranca um lamento
E experimentam nele a sua ferocidade.

Naquele vinho e pão que irão à sua boca
Misturam cinza junto aos impuros escarros:
Com muita hipocrisia lançam o que toca,
E se acusam por ter postos os pés em seus passos.

Sua mulher gritando o segue pelas praças:
Já que ele me acha bela e que mesmo me adora,
O serviço eu farei das antigas devassas,
Assim como elas quero algum enfeite agora.

E me embriagarei de nardo, incenso e mirra,
De mil genuflexões, de carnes e de vinhos,
Para ver se consigo em alguém que me admira
Usurpar a sorrir elogios divinos!

E quando me fartar dessas ímpias folias,
Pousarei sobre ele a forte e débil mão;
E as minhas unhas, como aquelas das harpias,
Acharão o caminho até seu coração.

Qual jovem passarinho a tremer que palpita,
Esse coração rubro arrancarei do peito.
E saciando essa minha besta favorita,
Vou atirá-lo ao chão com desdém, sem respeito!

Para o Céu, onde o seu olhar vê trono fúlgido,
O poeta sereno alça os olhos piedosos,
E esses vastos clarões do pensamento lúcido
Escondem-lhe a visão dos povos furiosos:

- Sê bendito, meu Deus, que dás o sofrimento
Qual divino remédio às impurezas tantas
E como o mais perfeito e o mais puro unguento
Que preparam o forte ás volúpias mais santas!

E sei que tu reservas lugas ao Poeta
Nas fileiras de escol das santas Legiões,
E que ele é convidado àquela eterna festa
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Eu bem sei ser a dor a nobreza suprema
Que nunca morderão a terra e os infernos,
E que para tecer meu místico diadema
Hei que me impor ao tempo e aos universos eternos;

Mas as perdidas joias da antiga Palmira,
Os ignotos mentais, as pérolas do mar,
Por tua mão montados, nada bastaria
A esse diadema claro de ofuscar;

Pois ele será feito dessa luz primeira,
Vinda do santo lar dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, em sua beleza inteira,
São apenas espelhos baços, cansativos!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Geena: Estada reservada aos rejeitados, inferno; dor extrema. (N. do E.)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Poemas de Charles Baudelaire - Flores do Mal

Hoje postarei um poema de Charles Baudelaire, do qual, aprecio muito.
Estou lendo sua obra "Flores do Mal" do qual li alguns poemas alguns anos atrás e gostei muito.
Boa leitura e boa apreciação do poema.

Ao leitor

A estultícia, o engano, o pecado, a avareza.
Ocupam-nos a mente e os nossos corpos minam,
E remorsos amáveis nosso corpo animam,
Como o mendigo ao verme que ele tanto preza.

Nossos pecados são duros, tíbio o pesar,
Vendemos a alto preço as nossas confissões,
E voltamos com gozo aos barrentos rincões,
Com vis prantos achando as nódoas apagar.

Do mal no travesseiro é Satã Trimegistro
Que embala lentamente a nossa alma encantada,
E o tão rico metal da vontade enleada
Faz-se vapor na mão desse sábio alquimista.

O Demo é quem segura o fio que nos guia!
Achamos sedução nas coisas mais nojentas;
Sem horror, através das trevas fedorentas.
Pro Inferno um passo a mais nos leva a cada dia.

Qual pobre garanhão que devora na transa
De alguma velha puta o seio dolorido
Queremos de passagem prazer escondido
Que esprememos tal qual bagaço de laranja.

Cerrado, a formigar como um milhão de helmintos,
Um povo de Demônios folga em nossa mente,
E a Morte, ao respirarmos, no pulmão, fremente,
Desce, invisível rio, em queixume indistinto.

Se o estupro, o incêndio, o veneno, o punhal,
Não lhes bordaram inda em desenhos risonhos
O rascunho banal de seus fados tristonhos
É que nossa alma, é pena, a isso se presta.

Mas em meio às cadelas, onças e chacais,
Macacos, escorpiões, gaviões e serpentes,
Os monstros a ganir, rosnar, pelo chão rentes,
Na fauna infame e vil dos vícios ancestrais

Existe um mais feio, e maldoso, e imundo!
Embora sem fazer grandes gestos, gritar,
É capaz de em frangalho a terra transformar
E num só bocejar engoliria o mundo:

É o Tédio! - carregado o olhar de pranto vão,
Ao fumar seu cachimbo em sonhos mergulhado,
Tu conheces, leitor, tal monstro delicado,
- Hipócrita leitor - meu igual - meu irmão!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

Feliz 2017!

Boa noite, venho por meio desta publicação comunicar que logo mais o blog voltará á ativa.
Daqui a pouco vou fazer uma postagem e em breve vou postar um dos meus artigos mais recentes, para via de leitura.
Também estou terminando de ler o livro "A Ilha" de Aldous Huxley e quando possível escreverei uma resenha crítica e postarei aqui.
Boa noite e boa leitura.